As cinzas da quarta-feira
Abri a
porta do apartamento e percebi no meio do chão um envelope pardo. Não lembro de
ter deixado cair nenhum envelope. Fui ver do que se tratava. No campo destinatário
estava escrito “para Ana, só Ana” juntamente com as informações do meu
endereço. No verso, apenas o estranho remetente: o homem do chapéu Panamá.
Apesar de
claramente e infelizmente não se endereçar a mim, achei linda aquela carta, uma
prova de amor sem precedentes. Como dizem por aí, em tempos de amores líquidos
e virtuais, onde relacionamentos começam e terminam nas telas dos computadores
e smartphones, uma carta escrita à mão e postada no correio como antigamente é
uma prova de amor irrefutável.
Não fazia
ideia de quem era a tal Ana, só Ana, muito menos o misterioso homem do chapéu
Panamá. Mas claro que minha curiosidade de mulher aquariana estava aguçada e
usando uma técnica infalível de abertura de envelopes, me pus no chão da sala
pra ler o conteúdo daquela carta. Difícil explicar o que eu senti ao encontrar
aquelas palavras, mas pude ver naqueles garranchos o amor que tanto doía no
peito daquele sujeito de chapéu Panamá. Não era apenas uma carta de amor, era um poema lindo e emocionante.
Com vocês,
a carta.
Ele sobre
ela
O que
primeiro reparei quando a vi foram seus olhos. Eram da cor do cacau e tinham um
brilho próprio e uma intensidade que nunca antes havia visto em um olhar. Eram olhos
vivos e contavam uma história, a sua história. Tão logo encontraram os meus,
aqueles olhos atravessaram minhas pupilas e minhas retinas e miraram minha
alma. Acertaram em cheio. Seus olhos me buscaram dentro de mim mesmo.
Em seguida
fui abduzido pelo seu perfume e viajei milhas e milhas perdido naquele cheiro
de mulher. Era único, era tentador, quase um vício.
Ela tinha
covinhas sacanas nas costas, seios que cabiam direitinho na palma das minhas
mãos e pés que pisavam de leve no meu coração. E o que dizer sobre suas pernas?
Ah, que lindo par de pernas! Eram elas que em mim se enroscavam no meio da
noite, eram nelas que eu me perdia nas manhãs de domingo.
Ela gostava
de deitar na grama do seu jardim suspenso e contar estrelas de madrugada. Sonhava
acordada com a lua cheia enquanto vagava só de calcinha pela imensidão do seu
espaço sideral.
Ela era
perfeita na sua imperfeição, era engraçada na sua tristeza, era forte na sua
insegurança e me fascinava sempre como se a estivesse vendo pela primeira vez. Era
ela. Me comovia. Me apaixonava.
Um dia, sem
mais nem menos e enquanto ela ainda dormia seu sono enredado, decidi que havia chegado
o momento de partir. Olhei pela última vez aquele seu corpo dourado que
brilhava no escuro do quarto, inspirei fundo em seu pescoço pra usar seu
perfume como combustível ao longo da travessia, vesti minha camisa de linho,
meu chapéu Panamá e fui embora pra nunca mais voltar.
Covardemente
desapareci do seu mundo porque percebi que eu não era homem suficiente pra ela.
Mas ela sim era mulher suficiente pra mim.
Espero que você me entenda, Ana, só Ana.
Assinado,
O Homem do Chapéu Panamá
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