A incrível fábula de uma doença chamada amor
Andava
adoentada, esquisita, sentindo coisas estranhas. Não tinha fome, não conseguia comer.
Seu corpo miúdo se alimentava dele próprio. Não tinha sono; revirava-se na cama
noite após noite, os olhos esbugalhados fixos no teto e a cabeça rodopiando
horas a fio no mesmo eixo, num único pensamento. Que a consumia um pouco mais a
cada dia que passava e que fazia doer uma dor muito aguda o seu coração pequeno.
Percorreu a
cidade em busca da cura pro mal que nem sabia qual era. Tomou a benção do bispo
na catedral católica apostólica romana, recebeu um passe de luz do médium
poderoso no centro espírita, fez cirurgia astral, consultou astrólogos,
tarólogos, numerólogos. Nenhum sinal de melhora. Incorporou um preto velho e
uma pomba gira num terreiro de umbanda, ouviu conselhos de um caboclo, meditou
com os monges budistas, e por fim, no
auge do desespero pra se desvencilhar daqueles pensamentos que lhe tiravam o
sono e que consumiam seu corpo, ajoelhou-se aos pés de um pastor da igreja
evangélica enquanto o dito expurgava aos gritos o diabo do seu corpo, a mão
firme postada sobre sua testa pálida.
Quando ja
não tinha mais forças pra andar, quando seus olhos ja quase saltavam de seu
rosto, foi que descobriu um médico através de um anúncio na rádio AM. Reuniu
com muito custo as energias que ainda lhe restavam no corpo magro e debilitado
e foi até o consultório no centro da cidade. Depois de muito lhe examinar, o
médico que mais parecia um anjo, deu-lhe o diagnóstico preciso:
- Isso é
doença de amor, minha filha. Não há reza, mandinga, trabalho, religião que
minimizem os sintomas. Há um remédio capaz de curar pra sempre esse mal. Mas o
frasco, único, está perdido em algum lugar do planeta, talvez vagando pelo
espaço aéreo ou à deriva em algum mar transparente de ilhas distantes. Pode ser que tenha sido encontrado por tribos
nômades do norte, por escaladores de montanhas do leste, por camponeses do sul,
por plantadoras de arroz do oeste, por ninfetas famintas e perversas de alguma megalópole
ou por andarilhos que caminham sem rumo pelas estradas do mundo.
Chorou
lágrimas secas com a força que ainda restava no seu corpo que aos poucos
sucumbia à doença. Seus olhos arregalados de quem não dormia havia um século
reviraram-se na mesma órbita. O coração encolhido reduziu-se ao tamanho de
uma ervilha e timidamente escondeu-se dentro do peito. Perdeu as esperanças de
encontrar sua cura, seu tratamento. Implorou ao médico com cara de anjo que lhe desse a eutanásia, que lhe fizesse uma cirurgia cardíaca às pressas seguida de
uma lobotomia pra lhe arrancar do coração e do pensamento aquilo que lhe
corroía. Era esse o cuidado paliativo de que precisava porque não conseguia
acreditar que a alopatia capaz de lhe devolver a vida pudesse ser encontrada.
Dias depois
da recuperação saiu andando pela cidade sem destino certo, o peito exibindo a ferida ainda aberta deixada pela operação e a cabeça rodeada de vento. Transformou-se
num amontoado de ossos empilhados sobre si mesmos desordenadamente, cuja pele
fina e translúcida fazia as vezes de capa impermeável. Seus olhos continuavam
esbugalhados, suas noites continuavam insones, seus dias ainda teimavam em ser
longos. Vivia de esmolas atirada sobre uma calçada imunda e enrolada em uma
coberta velha e fedorenta. Mas pelo menos estava livre, livre daquele
pensamento que lhe perturbava a alma e infestava o corpo. Havia finalmente encontrado a cura para o mal chamado amor.
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