Ficção de verdade
Este conto foi baseado numa história real que ouvi por
aí. Os nomes dos protagonistas e alguns detalhes sórdidos foram trocados afim
de preservar os personagens verdadeiros dessa história extraordinária e hilária.
Atrás das
grades
Leninha.
Era esse o nome da fera. Vinte e poucos anos, corpinho proporcional à idade,
longa cabeleira loira e crespa, olhos verdes e grandes. Uma leoa em potencial e
uma leonina real. Era estagiária do departamento de moda, comportamento e
beleza do jornal da cidade. Estilosa, cheia de tatuagens apesar da tenra idade,
era chamada de vida louca pelos mais velhos da firma porque ia pra balada dia
sim e outro também, embora cumprisse com suas obrigações profissionais e sempre
aparecesse na redação na manhã seguinte pra trabalhar com seu rímel borrado e
seu hálito de cerveja vencida.
Apesar do
estilo neo punk hippie chic que a classificava como uma festeira profissional,
Leninha tinha um coração de menina do interior que vive aquela paixão platônica
pelo galã da novela das nove e sonha acordada com ele. Neste caso o seu
mocinho, o protagonista dos seus devaneios cardíacos, era um dos reporteres da
editoria de polícia que atendia pela alcunha de Pastel por conta da pasta e
telefone que costumava carregar sempre. Um cara quase 10 anos mais velho do que
ela, malandro, mulherengo, do tipo que se acha a bala que matou Kennedy. Pastel
sabia que Leninha arrastava uma jamanta por ele e se aproveitava disso nos
hiatos em que não estava pegando ninguém por aí. Saíam juntos, enchiam a cara e
sempre terminavam a noite em algum motel barato da cidade. Pastel ainda morava
com a mãe, uma senhora aposentada e ciumentíssima.
Pastel e
Leninha tinham uma relação estilo polícia e ladrão, segundo as piadas dos
colegas de trabalho. Ela costumava perseguir seu alvo pelos bares e festas e
quando ele não saía acompanhado de alguém, então acabava se contentando com ela mesma.Leninha era a xepa depois da
feira livre, o
saldão depois do Natal, a rebarba depois da promoção. O problema é que bebia demais e quando enxergava Pastel agarrado
em alguma mulher, sempre armava algum escândalo que não raro acabava na cama
redonda com espelho no teto de algum quarto de motel. Viviam perigosamente entre tapas e beijos.
Festa de
final de ano do jornal. Leninha chegou vestindo minissaia de couro, sandália de
salto e uma blusa escolhida à dedo pra deixar seu recém colocado par de
silicones bem à mostra. Sentou no balcão do bar e pediu uma dose de whisky
cowboy enquanto esperava ansiosamente
pela chegada de Pastel para iniciarem ali mesmo ou no banheiro mais próximo o
ritual de acasalamento. Meia hora depois eis que ele surge na festa acompanhado
de uma morena estonteante que parecia ter saído de um editorial de moda da
Vogue. Gostosona, alta, pernas bem torneadas, bunda de passista de escola de
samba mas sem exagero, cabelo comprido e escorrido e maravilhosamente bem
vestida. A mão de Pastel enlaçando com firmeza a cintura da morena acabou com a
felicidade e com a noite de Leninha. Sua alternativa para evitar escândalos na
festa da firma era tomar um porre que anestesiasse a dor de ver sua paixão
apaixonado por outra. Pediu mais uma dose de whisky. E depois mais uma. E
outra. E mais outra. E só mais uma. E a saideira. Saltou do balcão do bar
cambaleando, o chão molengo debaixo dos pés, o teto girando na velocidade da
roda gigante. Quase caiu, mas foi amparada por alguém que não conseguia
reconhecer, embora tenha conseguido perceber que estava nos braços fortes de um
homem que parecia lhe desejar.
Abriu seus
olhos de ressaca vagarosamente. Olhou em volta tentando identificar onde
estava. Não reconhecia o lugar. “Onde é que eu tô e como foi que eu vim parar
aqui?”, se perguntava intrigada. A cabeça latejava de dor, mal conseguia mexer
o pescoço. Olhou seu próprio corpo naquela cama que não era a sua e percebeu
que estava sem roupa, vestia apenas a calcinha preta fio dental que Pastel tanto
adorava. Gelou. Estava seminua e não sabia sua localização no mapa. Que ótimo!
Foi então que ouviu um ronco vindo do lado esquerdo da cama e se deparou com um
corpo masculino estirado ao seu lado, dormindo candidamente. “Puta que pariu,
quem é este cidadão?” Fitou-o por alguns segundos e reconheceu aquele rosto:
era Rui, editor de esportes e amigo íntimo de Pastel. “Caralho, eu dei pro
Rui!” Saltou da cama com cuidado pra não acordá-lo, pois queria sumir dali sem
deixar qualquer rastro. Catou suas roupas espalhadas pelo chão do quarto e saiu
de fininho. Ainda conseguiu ver Rui se remexendo na cama e babando no
travesseiro enquanto encostava a porta do quarto sem fazer barulho.
7h da manhã
e estava na sala da casa de Rui, que também morava com a mãe, tentando ir
embora dali o mais rápido possível. Encontrou sua bolsa jogada no sofá e quando
foi pegá-la, percebeu que havia alguma coisa atrás do móvel que estranhamente
não estava encostado na parede. Chegou mais perto pra ver do que se tratava e
deu de cara com uma bandeja prateada com pipocas, uma garrafa plástica de
cachaça barata e penas que pareciam ser de uma galinha ja abatida. Era macumba,
despacho, mandinga feita pela mãe de Rui. “Cacete! Preciso vazar daqui agora!”
Calçou as sandálias e foi até a porta.
Girou a
chave e depois a maçaneta com cuidado. Ufa, suspirou aliviada. De relance viu
Rui só de cuecas, os olhos semi abertos, postado no meio da sala assistindo sua
fuga. Bateu em silêncio a porta do apartamento enquanto olhava pra trás.
“Consegui!” Foi então que avistou uma imensa grade de ferro à sua frente.
Estava presa numa espécie de gaiola entre o apartamento de Rui e o corredor do
prédio. O desespero tomou conta de Leninha, teve vontade de sentar no chão e
chorar. “Porra! Como é que eu vou sair daqui agora?”
Não teve
outra escolha senão tocar a campainha e pedir, morrendo de vergonha, que Rui a
libertasse. Ao enxergar a luz que vinha da rua, sentiu a mesma felicidade que
um detento costuma sentir quando sente o sopro da liberdade na cara ao deixar o
presídio depois de anos. Estava livre. Só não podia reincidir no crime outra
vez.
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