Das coisas que a chuva leva
Acordo e durmo e os dias se passam sem que a chuva pare de
cair lá fora. Já faz dias. Já faz tempo. É uma chuva calma, fina às vezes, não
há trovões ou raios. É mansa como ela, mas sua presença é forte e atordoa.
Me atordoa.
Os pingos grossos que por vezes batem na vidraça soam como o
caminhar de um relógio atirado sobre a mesa de cabeceira. São ritmados. Constantes.
Me enlouquecem.
Acordo e durmo e os dias passam sem que a chuva pare de cair
lá fora. Já faz um ano. Ela se foi pra não voltar. Ela disse que não haveria volta
e bateu a porta atrás de mim. O som seco da madeira estalando cada uma das suas
fibras ainda vive na minha lembrança. Fiquei só.
No dia em que ela partiu chovia como hoje, como ontem e como
amanhã. Lembro bem. Os ipês amarelos em frente ao prédio já estavam carregados
de flores sinalizando a chegada da primavera, mas ainda assim batia água como nos
dias de inverno. As nuvens densas vagavam lentamente. Seu cinza imprimia no céu
um ar triste. Talvez o céu apenas refletisse o meu estado de espírito. Eu estava
triste pela primeira vez na vida.
Acordo e durmo e os dias passam sem que a chuva pare de cair
lá fora. Já faz um ano, mas eu lembro bem. Ela recolheu algumas poucas peças de
roupa, alguns casacos impermeáveis, seu par de botas de borracha e jogou tudo
no porta-malas do carro pequeno. Bateu a porta atrás de mim e a chave pendendo na fechadura, a sua chave, deixou-me órfão.
As poças d’água na calçada me serviam de espelho e nelas eu
via meu semblante pesado, meus ombros curvados, meus olhos sem brilho. Ela se
foi. Num dia de chuva. Fiz o que podia e pedi que ficasse, mas era tarde.
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